quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Um outro Pagliacci

Era o melhor palhaço da atualidade. Uma mistura impecável de aperfeiçoamento, treinamento, talento divino e grande amor pela arte. Para Tuta, não havia nada mais digno do que a missão de elevar as almas das pessoas a níveis sublimes de felicidade, diversão despertando aquilo que todos têm de melhor.

O segredo de Tuta era tão simples quanto indecifrável. Ele não tratava os outros como criança e muito menos insistia em uma alma meramente infantil. O grande palhaço encarava as pessoas com um olhar humano e os abraçava com calor humano. E além disso, era muito engraçado. Seu senso de humor tocava as pessoas no nível mais pungente e seu timing era perfeito. Dominava todas as técnicas e estilos. Pastelão, humorista, piadista, imitação, sonoridades, peças e enganações.

Nas suas piadas - ou seriam obras? - mais polêmicas, simulou sua própria morte. Recebeu elogios e ovações que o consagraram como um grande artista do século. Muitos não gostaram, é fato, menos pela anedota de mau-gosto e mais por não ter entendido a piada.

Um dia qualquer - daqueles nem muito belo, mas nem muito feio - sem que nada memorável tivesse acontecido, Tuta ficou triste. Um grande vazio ocupou sua alma que ele esperava que fosse algo temporário, indigno de muita atenção. Entretanto, essa sensação permaneceu e aumentou discretamente a ponto de Tuta se indagar se o vazio não estaria ali o tempo todo e só agora vinha à sua percepção.

Ao confidenciar esse desconforto com um amigo de infância, Tuta se surpreendeu com a súbita gargalhada de seu companheiro. Irritado pela falta de consideração por estar se abrindo e demonstrar sua vulnerabilidade, o grande palhaço ignora seu amigo à procura de sua companheira de vida em quem, com certeza, poderia confiar tanta tristeza. A reação de sua amada, no entanto, foi ainda mais esmagadora: não apenas riu como se regressasse aos bons e saudáveis tempos juvenis, como também ligou para toda família para contar a mais nova sacada no melhor palhaço do século.


A situação apenas fez piorar o seu já incômodo vazio e estava o preenchendo com ódio e frustração devido à falta de capacidade de dar vazão à sua tristeza e da futilidade de encontrar alguém que compreendesse o quanto sofria. No auge da sua indignação, rompeu com sua mulher, toda a família e seus amigos e decidiu viver sozinho.
A notícia se espalhou rapidamente pelos meios de comunicação e pela boca do povo. Em poucos dias, Tuta aceitou um convite de uma grande emissora de TV para dar entrevistas em um auditório onde, julgou, seria adequado para anunciar o fim de sua brilhante carreira devido à desilusão recente. Dispensou os tradicionais trajes coloridos e as maquiagens e decidiu enfrentar a questão como homem, diante da sociedade.

Em meio de seu discurso rouco e ranzinza, Tuta é interrompido por um telespectador ao telefone que lhe perguntava até onde iria a nova piada, pois não se aguentava de tanto rir. O palhaço, então, percebe que todo o auditório está deslubrado com uma nova grande anedota e centenas de telefonemas e mensagens não cessava de chegar à redação. Enfurecido, Tuta se utilizou de todos os vocábulos de baixo calão que conhecia, embriagado de ódio pela humanidade que apenas servia para atingir em cheio o gosto de seu público.

Saiu do programa antes de seu fim, refugiou-se em uma fazenda em uma fútil tentativa de escapar da mídia e curiosos. Valendo-se de remédios para se controlar, Tuta entra em profunda depressão por não conseguir expressar a sua tristeza e desabafar todo o sentimento negro que o apossara. O ódio crescia na mesma proporçao de sua frustração. Convenceu-se de que não havia saída nesse beco sem saída. Amarrou uma corda em uma pilastra no teto, preparou um forte e simples nó e, com a ajuda de um banco, colocou seu pescoço na corda na última esperança de encerrar todo o sofrimento.

Seu corpo só foi encontrado dias depois, quando os repórteres perceberam a pouca movimentação dentro da fazenda. Muitas especulações rondearam o caso, vasculharam sua vida recente em busca de pistas e histórias. No entanto, era unânime entre a sociedade a opinião de que Tuta tinha realizado a sua obra-prima do humor.

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